sábado, 13 de julho de 2013

Perséfone: Rainha do Inverno ou Donzela da Primavera?


Já retratamos superficialmente o mito de Perséfone na postagem Mães Cósmicas e Divindades da Terra, cuja história explica o surgimento das estações do ano: quando ela é obrigada a deixar o Olimpo para retornar ao Reino Subterrâneo, a grande deusa da fertilidade (sua mãe, Deméter) se recusa a fazer seu trabalho - afogada em saudade da filha - e condena o mundo a infertilidade do inverno. A beleza e a vida voltam a brotar na primavera, quando Perséfone tem permissão de deixar temporariamente o reino de seu marido, Hades, e retornar aos braços da mãe.

O mito de Perséfone é uma elegante explicação sobre o ritmo cíclico da vida e como o microcosmo e o macrocosmo estão interligados intimamente. É possível traçar um paralelo entre o processo de individuação de Perséfone e a ideia do ciclo cósmico proposta pela milenar sabedoria hindu: Yugas são as quatro 'eras' (ouro, prata, estanho e ferro) pelo qual o mundo passa, caracterizadas pela aproximação e distanciamento da Essência Divina. De menina inocente à mulher sábia, de donzela da primavera à rainha do inverno, Perséfone é obrigada a enfrentar os aspectos mais sombrios de seu ser para renascer fortalecida  depois de descobrir o potencial divino dentro de si.    

Deixo que as belas palavras de Sílzen Furtado expliquem como este mito é utilizado na prática clínica:

"A prática da clínica psicoterápica é um espaço sagrado onde se revelam os padrões psíquicos mais profundos, estruturantes da alma humana. As diversas histórias que ali se derramam, com seus traumas e transformações, representam uma amostra do que há de mais singular nos indivíduos ao mesmo tempo em que apontam para os temas centrais da vida, os quais sempre foram citados pela mitologia de todas as épocas. Nos mitos os arquétipos se revelam em sua forma mais pura. Em cada enredo elaborado pela consciência dos homens de milênios atrás, com uma linguagem simbólica, típica do inconsciente, são contados os caminhos para a evolução da alma humana, os passos heróicos imprescindíveis para a iluminação da consciência, a trajetória do Ego na direção do Self. Cada mito aborda aspectos diferentes de uma mesma jornada, a única que é essencial a qualquer pessoa, o caminho de sua Individuação. O mito de Perséfone apresenta o tema da filha inocente raptada do mundo da mãe (Deméter) pelo deus dos subterrâneos (Hades). Conta o mito que Perséfone debruçou-se para colher uma flor de Narciso à beira de um precipício quando a terra se abriu e dela surgiu Hades, que a seqüestrou para o mundo das trevas. Sua mãe a procurou por vários dias até que ameaçou lançar a infertilidade sobre a terra se a filha não fosse encontrada. Com a interferência de Zeus, Hades concorda em devolvê-la à mãe, mas antes lhe oferece sementes de romã, que ela aceita, e por ter se alimentado naquele local ficaria eternamente vinculada ao mesmo. Perséfone então passa a viver quatro meses com Hades nos infernos e oito meses com a mãe no Olimpo. 

Fazendo uma tradução para uma abordagem contemporânea identificamos alguns mitemas trazidos por esta história e que podem ser observados na prática clínica. A iniciação no mito dá-se com um rapto, fazendo referência à forma como se inicia o contato com o inconsciente para quem possui a consciência impregnada pela inocência. Há pessoas que permanecem por longo tempo numa atitude fantasiosa com relação às questões decisivas da maturidade e são despertadas de modo violento (crises de pânico, sintomas físicos, perdas, acidentes...) para uma reflexão mais profunda sobre o caminho que tem percorrido até então. Atendi uma jovem mulher que se casou com um homem que pouco conhecia para depois reconhecer nele o "príncipe das trevas". Este homem encarnou e representou sua imagem de animus negativo, estruturada ao longo dos anos de convivência com um pai alcoolista, acrescida por ter sofrido abuso sexual de um tio na infância, e reforçada pelo final traumático e sem explicações de um namoro com o seu grande amor na adolescência. Para não deparar-se com a perda do sonho romântico, continuou a acreditar numa felicidade ingênua, sem esforço, vinculando-se a uma relação aparentemente feliz, mas que se configurou como as "sementes de romã" que a tornaram prisioneira de um mundo sombrio. A iniciação traumática ou mediante uma profunda crise na vida funciona geralmente como um chamado para iniciar conscientemente o processo de individuação, proposto por Carl Gustav Jung como o conceito central da Psicologia Analítica. O rapto pode ser visto simbolicamente como uma lesão infligida ao ego que precisa ser provocado para abdicar de seu controle exclusivo sobre o psiquismo, estimulando-o ao reconhecimento do centro maior, o Self. 

A descida inicialmente traumática é, entretanto, a chave para um vasto campo de descobertas interiores. O tema da descida ao inconsciente, seguida da ascensão vai transformando a ingênua Perséfone na grande "Senhora dos Infernos", mas não sem antes sofrer os períodos de pavor através do qual um psiquismo inocente é invadido pelo confronto com os conteúdos assustadores que estiveram durante longo tempo reprimidos. O temor dos conteúdos internos, o medo de enlouquecer, a culpa por ter "comido as romãs", a inabilidade de lidar com conteúdos tão afetivamente carregados, aprisionaram a psiquê da paciente durante ainda algum tempo num padrão infantil, o qual se manifestou como busca de proteção maternal da vida e dos outros. Ela manifestou durante meses o pânico das fantasias sombrias que a assaltaram, a insegurança em lidar com os afazeres do mundo adulto (trabalhar, assumir um lugar social, responder por seus atos...). Temia sempre uma punição qualquer, vinda de qualquer pessoa, quando na realidade projetava sobre o mundo e as pessoas os algozes interiores que começava a reconhecer como aspectos de sua sombra (o orgulho e o desejo de domínio escondidos sobre a capa da mulher frágil e desprotegida, a vaidade excessiva ocultada pelo perfeccionismo e pela exigência de ser a melhor em tudo o que fizesse). 

A psiquê infantil violentada pela iniciação brusca demora em se situar no mundo avernal. Acha-se inicialmente vítima do mal exterior encarnado na figura do marido para não identificar em si as "sementes" do mesmo mal que acusa no outro. A imaginação fértil, as intuições funestas, a relação direta com os sonhos, são os componentes deste mundo que inicialmente foram vistos como ameaçadores, pois revelaram seu padrão autopunitivo, persecutório, para redimir-se de uma profunda culpa inconsciente, responsável pela rede de armadilhas construída em torno de si mesma para expiar seus sofrimentos. A Perséfone imatura geralmente aparece sob a roupagem da vítima, da mártir, da incompreendida. Só depois, com o tempo e a maturidade conquistada pelo esforço na relação com o inconsciente, poderá entender melhor suas manifestações psíquicas, deixar de projetar no externo as raízes de seus males, e dirigir de maneira sábia a relação com os conteúdos do mundo avernal, fazendo das manifestações inconscientes, poderosos aliados. É preciso realizar completamente a dolorosa descida para ser capaz de subir e trazer para a superfície a sabedoria adquirida. Após o período de sofrimento Perséfone é libertada e é agraciada com o poder de circular tanto no Olimpo como no Hades, saber do céu e do inferno, penetrar as raízes da dor e descobrir o caminho da própria cura. A paciente começou a trazer para sua vida concreta os benefícios deste contato profícuo com o inconsciente. 


A sabedoria é resultado da construção de um mundo íntimo rico e fértil, que não é mais tratado como inimigo necessitado de mecanismos repressores. O arquétipo do Velho Sábio no inconsciente masculino e o da Grande Mãe no feminino orientam o desenvolvimento do ego na direção do Self. Acompanhar um paciente em psicoterapia analítica é identificar os caminhos apresentados por seu Self e revelar para sua consciência os símbolos genuinamente criados para direcionar a energia psíquica na trajetória da individuação. Deixar-se conduzir pelas diretrizes do Self, aprender a relacionar-se com o mundo subjetivo de si mesmo e estar conectado às próprias profundezas é ser guiado pelo propósito superior da individuação. Até alcançar este estágio de perfeita sintonia com o Self passamos, entretanto, por descidas e subidas cíclicas, recheadas de sofrimentos e vitórias, como retrata o mito. Nos ciclos de descida aos infernos nos conectamos inicialmente com os medos, a depressão, os aspectos infantis, os conteúdos instintivos. Subimos à consciência e vamos aprendendo a integrar tais aspectos na personalidade total. As descidas seguintes já vão perdendo seu caráter traumático, permitindo assim o vislumbrar da sabedoria resultante do mergulho nas próprias feridas, favorecendo então a percepção dos componentes criativos e ordenadores do psiquismo. É preciso resistir às dores iniciais para merecer penetrar os recantos mais transcendentes do ser. 

Ampliando a consciência sobre os aspectos antes desconhecidos de si mesma pôde utilizar adequadamente seus verdadeiros talentos, abandonar progressivamente o papel da vítima e assumir seu lugar como profissional, mãe, e mais do que isso, a legitimar a si mesma, recuperando a crença na forma própria de sentir e avaliar as situações vividas. O medo, a culpa, o discurso de vítima foram cedendo espaço para uma manifestação mais sincera de seus verdadeiros atributos inconscientes. Passou a perceber com maior respeito e consideração qualquer conteúdo que aflorava nos sonhos e nas fantasias, desenvolvendo um diálogo aberto com os mesmos. Abandonar o lugar de inferioridade antes habitado e colocar-se como pessoa ativa na construção do próprio destino é uma mudança que desafia o antigo padrão tão cultivado pela Perséfone menina. Despedir-se dos aspectos infantis e assumir o ônus da vida adulta, responsabilizando-se pela própria psiquê, assumindo seus deuses e monstros interiores é tarefa heróica que transforma a vítima assustada na Perséfone sábia."

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